"De manhã cedo, acordada por Pierre antes mesmo do toque do despertador, Estela iniciou os preparativos para iniciar o dia. Banho, café da manhã e uma breve arrumação na casa, sem trocar uma só palavra com seu filho. Ao chegar na escola, antes de se encaminhar para a secretaria, Estela foi chamada para uma reunião com a professora e a coordenadora da educação infantil. Ficou estabelecido que ninguém seria punido e que um lanche com pais e alunos seria realizado para promover um relacionamento mais próximo entre as famílias e estimular a boa convivência entre as crianças. Estela se desculpou, deixando entendido que não deveria ter colocado seu filho exposto daquela forma, como bem havia sido orientada pela professora. Na sala de aula, a professora conseguiu contornar a situação e fazer com que Pierre pedisse desculpas ao colega machucado por ele, levando toda a turma a deixar o ocorrido para trás. No trabalho, Estela permaneceu silente, imersa em seu sofrimento particular.
A sexta-feira se encerrou com nenhuma interação além da necessária entre Estela e Pierre. Jantar, banho e a disponibilização de um tempo para Pierre brincar sozinho com seus bonequinhos dentro do quarto. Alguns copos de cerveja e alguns cigarros para Estela até que ela pudesse pegar no sono. Dessa vez, em sua cama, sem gritos, sem choro e sem guerra com seu filho.
O mesmo clima inóspito tomou o ambiente no sábado e no domingo. Dias frios e chuvosos que não permitiram nem ao menos um ligeiro passeio pelo parque. Dias que exigiriam sorrisos, abraços, afagos, beijos, danças, cores e sabores diversos para entreter, acolher e fazer a vida valer a pena, mas nada disso aconteceu. Toda criança deve ser marcada por lembranças com cheiro de chocolate, canções de ninar e beijos se encerrando com risos em sessões infindáveis de cócegas, mas essas não foram as lembranças de Pierre. Com fundamento naquele fim de semana, as memórias foram construídas com peças de um jogo desbotado e danificado, com regras confusas e sem vencedores. Memórias silenciosas, cortadas por lágrimas não enxugadas e uma sensação estarrecedora de que a vida não entrega nada além de uma amarga solidão."
Trecho do livro "Pierre".