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  • Foto do escritorPedro Rangel

Pode ser a última vez.

Pode ser a última vez.

 

Você adormeceu no carro e acordou na cama... e essa foi a última vez que isso ocorreu, pois você passou a se deitar sozinho em sua cama depois de regressar para casa. Sem perceber, você cresceu.

 

Você abriu o baú dos bloquinhos de montar, criou um castelo e, ao final, os guardou de volta... e essa foi a última vez que isso ocorreu, pois você não mais teve interesse em brincar com aqueles bloquinhos. Sem perceber, você cresceu.

 

Você ajeitou se bichinho de pelúcia ao lado do travesseiro e adormeceu em paz, mas no dia seguinte, não se deu conta de que o bichinho foi parar debaixo da cama...e essa foi a última vez que isso ocorreu, pois você não o procurou novamente antes de dormir. Sem perceber, você cresceu.

 

Fazemos muitas coisas pela última vez e sequer nos damos conta disso. Deixamos a sala de aula pela última vez, fechamos um livro pela última vez, nos despedimos de um lugar, de um objeto, de uma atividade pela última vez...e só nos tornamos conscientes disso quando a saudade aperta ou quando lamentamos não poder mais desfrutar de algo que foi tão bom.

 

Também nos despedimos de pessoas amadas. Compartilhamos momentos intensos ou rotineiros, sentimos aquele cheiro tão específico, aquele abraço gostoso e observamos aquela forma tão peculiar de se comportar, mexer nos cabelos e franzir a testa... e, sem perceber, fazemos isso por uma última vez. Traço marcante de tudo o que existe nesta vida é a finitude. Tudo se acaba. Tudo, em algum momento, se vai. Não temos como evitar. Não esperamos por esse fim e só nos damos conta, como eu disse há pouco, quando a saudade aperta.

 

Haverá um dia em que a última vez não será percebida por nós, mas pelos outros que nos olham, nos abraçam e nos querem bem...nos querem perto, sempre presentes na fantasia de que a felicidade pode durar para sempre e que a alegria sempre subjugará o sofrimento. Haverá um dia em que nós seremos aqueles a deixar saudade. Haverá um dia em que todas as nossas experiências serão reunidas em uma mochila e nós seremos forçosamente convidados a partir e nunca mais voltar. Sabemos disso, apesar de não mantermos essa informação visível durante os nossos dias. Que bom que fazemos dessa maneira! Somente assim, fingindo a imortalidade, temos condições de encarar a vida com paz e alegria suficientes para realmente desfrutar do que é tão bom. A questão é justamente essa: aprender a desfrutar do que é tão bom, enquanto existimos! Posso dizer que isso é um exercício. Fiz esse exercício ontem, me obrigando a atentar para cada detalhe daquilo que experimentei.

 

Domingo, dia 26 de maio de 2024, a alguns meses de distância para os 40 anos de idade, tive um dia bastante comum. Comum e maravilhoso, porque decidi prestar bastante atenção ao que ocorria durante minhas respirações.

 

O dia começou cedo, como de costume. Minha esposa e meus dois filhos já haviam preparado a mesa do café quando eu desci as escadas até a mesa da copa. Suco de laranja, banana, pão francês com manteiga de macadâmia e leite de castanha com cacau. Parte do cardápio vegano que passei a apreciar desde a metade do ano passado. Durante o café, pude colocar os olhos, os ouvidos e o coração nas histórias em quadrinho que meus dois filhos resolveram escrever e mostrar, falando sem parar, me deixando levemente confuso diante da necessidade de, tão cedo, dividir minha atenção entre a comida, a esposa, as crianças e todo o resto das imagens da noite anterior e dos eventos que ocorreriam ao longo do dia. Muito falatório e pouca tranquilidade, mas um momento especial para ser degustado e guardado com carinho na mochila que um dia vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

Depois do café bastante demorado, fomos todos à igreja. Domingo de manhã é dia de culto por aqui. Escola Bíblica Dominical. Pregação, bíblia e mais um momento de autoanálise em que pude conferir muitos ajustes que preciso fazer em minha relação com Deus, que tanto me ama e me perdoa, e a quem eu não tenho oferecido a devida fidelidade. Momento especial para refletir e guardar com carinho na mochila que vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

Depois do culto, fomos todos ao mercado para comprar ingredientes para a confecção de nuggets saudáveis (com parte vegana separada para mim) que aprendi com uma famosa chef de cozinha e apresentadora de televisão que acompanho de vez em quando. Ingredientes escolhidos, passamos a tarde na cozinha. Sujando muito e demorando mais ainda, já que mãos de crianças são menores e derrubam objetos com muita facilidade. Em um dado momento, meu filho derrubou metade do pacote de linhaça. Irritado como todo adulto insensível nesta sociedade, consegui respirar e visualizar que meu filho estava adorando viver aquilo comigo, o que me fez corrigir minha rota e me levar a ignorar o fato e buscar outros ingredientes disponíveis para substituir a linhaça. Famintos e cansados, conseguimos nos alegrar com o feito. Vários nuggets de frango com brócolis e cenoura... e outros de feijão fradinho no lugar do frango. Matamos a fome com o orgulho de quem conseguiu cozinhar tudo com alegria. Momento especial para refletir e guardar com carinho na mochila que vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

Na parte da tarde, a família se dividiu. Na sala de televisão, minha esposa assistiu a um desenho da Barbie com minha filha. Meu filho e eu, deitados na cama do meu quarto, decidimos assistir a um episódio de uma série baseada na saga Star Wars. Descanso, corpos grudados e mãos se acariciando diante das cenas interessantes e cheias de efeitos tecnológicos. Momento especial para guardar com carinho na mochila que vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

De barriga cheia em decorrência do almoço tardio, ninguém quis lanchar. Nos preparando para o culto da noite, tivemos que enfrentar aquilo que nenhum pai/mãe gosta: filho doente. Meu filho começou a se sentir mal. Dor de cabeça, enjoo e cansaço. Remédio, carinho e aconchego. Esposa e filha se arrumaram e partiram para mais um culto de domingo na igreja. Enquanto isso, li a bíblia para meu filho e o coloquei para dormir mais cedo que de costume, com muito carinho e beijinho a testa. Apesar da tristeza pela doença, mais um momento para guardar com carinho na mochila que vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

Filho dormindo, esposa e filha de volta. Acompanhei as duas no jantar e, como estava superenvolvido na tarefa de viver em cada detalhe o que o dia teria para me proporcionar, fui colocar minha filha para dormir. Já com muito sono, ela não demorou muito para fechar os olhos enquanto agarrava meus dedos com sua mãozinha e sentia meus lábios acariciando sua testa. Vocês aí, com filhos em casa, concordam comigo que essa é uma das experiências mais gostosas da paternidade/maternidade? Eu digo que sim! Momento especial demais para guardar com carinho na mochila que vou levar comigo para a viagem sem volta.

 

Filhos dormindo, dia encerrado na cama com a esposa. Um dia pode ser a última vez. Quando será minha última vez? Quando partirei para essa viagem sem volta? Não sei, mas vou me dedicar e realizar mais esse exercício diário que faz a vida valer a pena.

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